Lenda da Terra
do Avô
Alvores
da Nacionalidade. Raízes de Portugal. Raízes plantadas na terra por D. Afonso
Henriques e os seus homens. E regadas com sangue. E cheias de esperança!
Ao lado do primeiro rei de Portugal, entre os companheiros mais dilectos,
estava quase sempre Egas Moniz, o aio dos nobres exemplos. Com ele e com outros
seus fiéis guerreiros, em lances de ousadia e coragem, o rei Afonso de Portugal
ia ganhando, palmo a palmo, novos territórios para o seu reino. Para o nosso
reino.
Mas
o tempo não pára. Segue impiedosamente na sua cavalgada. Passa e faz
envelhecer. Conta-se pois que um dia, já em idade avançada, Egas Moniz achou
por bem escolher entre os seus familiares um possível sucessor. E mandou chamar
seu neto Pedro Afonso Viegas, moço bem parecido e de olhar sonhador.
— Meu neto, doravante, andarás sempre comigo...
— Isso me honra, Senhor!
Egas Moniz olhou-o com ternura.
— Escolhi-te, Pedro Afonso, porque confio em ti... De toda a minha
descendência, és tu o que mais se parece comigo!
Pedro Afonso curvou-se ligeiramente para ele.
— Também eu, Senhor, muito vos quero e admiro... Já que me honrais com a vossa
confiança, senhor meu avô, procurarei sempre ser digno dela!
Egas Moniz rompeu numa gargalhada.
— Até nas falas te assemelhas ao que eu fui!
Baixou o tom de voz e prosseguiu, quase em confidência:
— Nosso rei D. Afonso... quando ainda não era rei, mas apenas infante, e me
ouvia falar assim... chamava-me «Mestre Egas»...
Susteve a narrativa, riu nervosamente e continuou:
—Também eu, um dia, gostaria de te chamar... «Mestre Pedro Afonso»...
O jovem ruborizou-se.
— Oh, senhor meu avô, sois demasiadamente bom para mim!
Então, o velho aio e conselheiro d’el-rei de Portugal segurou as mãos do neto
com força, e com força exprimiu o seu desejo:
— Eis o que eu quero que tu sejas também, meu neto: demasiadamemte bom para
mim!
Olhou-o bem de frente e repetiu, silabando devagar:
— Compreendeis, Pedro?... Demasiadamente bom para mim!
Depois, largou-lhe as mãos e acrescentou, num tom já mais discreto:
— Não vos faltarão as recompensas, acreditai!
Mas logo a voz de Pedro Afonso Viegas se ergueu, em contraste de altivez:
— Basta-me, senhor meu avô, a recompensa da vossa amizade... do vosso amor...
Houve uma pausa entre ambos. Pausa curta. De expectativa. De seguida, o velho
Egas Moniz pigarreou um pouco.
— A propósito de amor... Pedro Afonso Viegas, meu neto e companheiro...
consta-me que tu... tu e D. Urraca...
— Por favor, senhor meu avô, por tudo vos rogo que não ofendais o nome de Dona
Urraca!
Egas Moniz voltou a rir.
— Ofendê-la, eu?... Quem julgais que sou, neto presumido e tolo?
E empertigando-se, ajuntou, ainda nuns restos de sorriso:
— Como poderia eu ofender jovem tão casta e virtuosa, como Dona Urraca, filha
do nosso rei?...
Entredentes, quase com receio de ser escutado, o jovem Pedro Afonso murmurou:
— Filha bastarda, senhor…
Foi suficiente, porém, para o velho Egas Moniz se exaltar.
— E que tem isso, neto presunçoso? Acaso D. Afonso só é digno de ter filhos de
Dona Mafalda? Então... e Fernando Afonso?... E Pêro Afonso?... E Teresa
Afonso?... Não são esses iguais a Dona Urraca?
Mediu o neto de alto a baixo, com olhar severo, e concluiu:
— Todos são, afinal, filhos do amor do nosso rei D. Afonso… embora de mães
diferentes!... Não achais assim?
A pergunta era de desafio. A resposta pediu tréguas:
— Tendes razão, senhor meu avô… Fui injusto.
Num recrudescimento de energia, acrescentou:
— Acreditai… Quero muito… muito, mesmo a Dona Urraca!
E, ajoelhando-se diante do velho Egas, o jovem confessou abertamente:
— Quero-lhe tanto... como vos quero a vós, senhor meu avô!
Os braços ainda fortes de Egas Moniz ajudaram-no a erguer-se. E, num ar ligeiro
de malícia, o velho herói sentenciou:
— Sabeis, meu neto? A isso… chama-se amor, Pedro Afonso Viegas!
Mas a conversa não prosseguiu. Um alarido inesperado, vindo do exterior, pôs em
sobressalto o semblante dos dois homens. O mais velho ordenou:
— Ide ver o que se passa, Pedro Afonso. Não compreendo tal agitação...
Pedro Afonso saiu correndo. Egas Moniz ficou só. Levantou-se pesadamente,
quanto as suas forças permitiam em tão provecta idade. E encetou um vagaroso
passeio arrastado, ao longo do aposento em que se encontrava, enquanto falava
consigo próprio:
— Senhor Deus, estarão aí de novo os sarracenos? Terei ainda de vestir a minha
cota e empunhar a minha espada?... Pois não bastam tantos e tantos anos de
luta, Senhor?!... Poupai-me, agora que estou velho e cansado... e que o meu Rei
anda longe daqui...
Parou, suspirou e prosseguiu, no passeio e no monólogo.
— Ah, que se D. Afonso aqui estivesse, nem os mouros se atreveriam sequer a
aproximar-se!... Mas, assim...
A porta abriu-se violentamente e Pedro Afonso Viegas apareceu alvoroçado, a
gritar.
— Senhor! Senhor meu avô! São os sarracenos malditos que voltam!...
Parado no meio do aposento, Egas Moniz endireitou-se e fez um gesto altaneiro,
a lembrar os seus antigos tempos.
— Pois então dai-me a minha espada e o meu cavalo!
Pedro Afonso Viegas olhou-o, num sobressalto sincero.
— Mas, Senhor... na vossa idade...
E, aproximando-se de Egas Moniz, pediu energicamente:
— Ficai, senhor meu avô. Ficai... que vou eu!
Mais energicamente ainda, o avô retorquiu com severidade:
— Cumpre as minhas ordens!... Depressa, ouviste?... Eu continuo a ser o chefe,
enquanto o nosso rei estiver longe!
Como o rapaz continuasse parado diante dele, o velho gritou iradamente:
— Ouviste? Dá-me a minha espada e o meu cavalo!
Depois, a contemporizar um pouco, sorriu para o jovem e disse:
— Já que os sarracenos querem luta, vamos para a luta!
Segurou-o pelos ombros e acrescentou, num ar de jubiloso entusiasmo:
— Ouve, Pedro Afonso Viegas, meu neto querido... Aqui te juro, por Deus, que a
terra que conquistarmos será o meu presente de noivado... para ti e para Dona
Urraca!
Comovido, o rapaz abraçou o velho.
— Obrigado, Senhor Avô, obrigado!
Mas logo, libertando-se do abraço, o indomável Egas Moniz encaminhou-se para a
porta, exclamando:
— E agora, ao combate!
Segundo
narra a própria história, dessa vez o combate foi muito duro e violento,
sacrificando grande número de vidas, dum lado e do outro.
Porém, os portugueses, comandados pela energia de Egas Moniz pelo desembaraço
do seu jovem neto Pedro Afonso Viegas, acabaram por levar a melhor,
escorraçando os sarracenos e conquistando-lhes uma vasta extensão de terreno.
E conforme prometera, assim que a luta parou, o velho Egas Moniz mandou chamar
de novo o seu neto, que andava por longe perseguindo os últimos guerreiros
mouros.
— Pronto, Pedro Afonso Viegas... Eis o cumprimento da minha promessa... Tal
como te jurei, meu neto, esta terra é tua... É o meu presente de noivado.
De seguida, empurrou-o suavemente para a saída.
—Vai, corre ao encontro da tua formosa Dona Urraca… e diz-lhe que já tens terra
para viverem.
Pedro Afonso Viegas olhou em redor, abrangendo o horizonte enublado.
— Mas, Senhor Avô, eles podem voltar...
Egas Moniz empurrou-o mais. E mais se riu, ao dizer.
— Não tenhas receio. Se voltarem… aqui estou eu para os receber com a ponta da
minha espada, que apesar de velha não enferrujou!
Olharam-se de novo, frente a frente. Sinceramente confiados um no outro, e
ambos no futuro. Depois abraçaram-se longamente.
De um salto, Pedro Afonso Viegas encontrou-se montado no seu cavalo.
O avô gritou-lhe então:
— Vai, vai depressa!... Leva a boa nova à tua bem-amada, que entretanto eu
mandarei erguer aqui um castelo para nossa defesa.
Entusiasmado, o jovem exclamou:
— Mas isso será extraordinário! Passaremos a chamar-lhe o Castelo do Avô!
Satisfeito, feliz, o velho Egas Moniz sublinhou com uma gargalhada:
— Dizes bem, meu rapaz... Será o Castelo do Avô!
Dali, correndo pelos caminhos em cavalgada doida, o jovem Pedro Afonso Viegas
partiu ao encontro da linda Dona Urraca.
A jovem esperava-o, inquieta.
— Meu amor, tardastes tanto!... Cheguei a recear por vossa causa... Há dois
dias e duas noites que não faço outra coisa senão rezar.
Ele fitou-a, num misto de agradecimento e de admiração. Depois falou devagar, a
saborear o efeito das suas próprias palavras.
— Se só agora voltei, Senhora, foi para vos dar uma bela prenda de noivado: a
última terra conquistada aos sarracenos!
Por instantes, a jovem e bela Dona Urraca ficou como que estática, mal podendo
acreditar no que ouvia. Mas não tardou em exteriorizar toda a sua alegria.
— Louvado seja Deus e Sua Santa Mãe! E como vosso avô é bom e generoso! Hei-de
beijar as mãos magnânimas de D. Egas Moniz...
Aproximou-se mais de Pedro Afonso Viegas.
— Dizei-me: vosso avô acha que o senhor meu pai e nosso rei não se oporá.
O jovem sorriu, a dar-lhe confiança. As mãos de ambos entrelaçaram-se numa
carícia de amor.
— Meu avô afirmou-me que el-rei Afonso terá decerto uma grande alegria no vosso
casamento comigo.
— Que falta então, Pedro Afonso Viegas, para passarmos do sonho à realidade?
A pergunta ficou suspensa no espaço, apenas durante uma risada de felicidade. E
logo a resposta soou a marcha nupcial:
— Falta apenas uma coisa, Senhora minha: casarmos! É o que vamos fazer, o mais
depressa possível, se Deus quiser!
E Deus quis. No meio de grande pompa, numa igreja que el-rei D. Afonso mandara
construir especialmente, casaram a moça e formosa Dona Urraca, filha bastarda
de D. Afonso Henriques, com o jovem e valoroso cavaleiro D. Pedro Afonso
Viegas, neto de D. Egas Moniz. E também, como estava previsto, foram viver para
o território onde se construíra o Castelo do Avô.
Simplesmente, as tréguas duraram bem pouco tempo, pois os sarracenos voltaram
com o desejo de vingança.
E foi ainda o velho Egas Moniz que os recebeu com a ponta da sua espada, tão
antiga e indómita como ele.
Porém, desta vez, Egas Moniz teve menos sorte. E, embora vencendo, ficou
gravemente ferido.
Recolheram-no imediatamente ao castelo e procuraram salvá-lo a todo o custo. A
jovem Dona Urraca não escondia a sua aflição sincera.
— Oh, Senhor, como sangrais!... Deus nos acuda!
Ainda que débil e exausto, Egas Moniz conseguiu sorrir para ela.
— Não vos aflijais com isso, querida neta... Eu tenho muito sangue!
Foi dolorosa e longa a vigília dessa noite. O velho aio e conselheiro d’el-rei
D. Afonso parecia, por momentos, sucumbir às dores e à perda de sangue. Mas
logo, por milagre de vitalidade, voltava a reanimar-se.
A seu lado, Pedro Afonso Viegas repetia a mesma prece de sempre:
— É preciso que vos salveis, senhor meu avô... É preciso que vos salveis!
Ao cabo de muitas horas entre a vida e a morte, o velho herói pareceu escutar a
voz do neto. Agarrou-lhe as mãos, e murmurou:
— Salvar-me-ei, sim, descansa... Não morrerei ainda desta vez... E, de qualquer
modo, eles não voltarão... Esta terra é nossa, definitivament nossa!
Os rostos de Dona Urraca e de Pedro Afonso Viegas inclinaram-se, exultantes,
sobre o rosto de Egas Moniz, que lhes sorria. Salvara-se! Vencera a morte,
fazendo-a fugir mais uma vez...
Então o jovem Pedro Afonso disse, solenemente:
— Senhor, se me permitis... esta terra será chamada para todo o sempre, e em
vossa justa homenagem, a Terra do Avô.
E ambos repetiram, como que num cântico de satisfação e orgulho:
— A Terra do Avô!
Tal
é, segundo a Lenda nos conta, a origem do nome de Avô, que ainda hoje mantém
aquele território conquistado aos Mouros, perto de Oliveira do Hospital.
Fonte:
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] ,
p.Volume I, pp. 249-254
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Castelo de Avô |
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